domingo, 6 de julho de 2014

Análise de discurso crítica da divulgação científica na Revista Ciência Hoje

Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Comunicação e Expressão
Departamento de Língua e Literatura Vernáculas
Análise do Discurso
Prof. Adair Bonini

Análise de discurso crítica da divulgação científica na Revista Ciência Hoje

Eduardo Popinhak Franco

Resumo
Esse trabalho visa analisar o discurso de divulgação científica presente na revista Ciência Hoje. Para isso, serão analisados os editoriais de 8 números da revista. A análise visa compreender a imagem de ciência transmitida por essa revista e como essa divulgação contribui para discursos predominantes sobre a ciência no Brasil. A base teórica para o trabalho será a Análise Crítica do Discurso de Fairclough e Chouliaraki utilizando os conceitos de discurso, ideologia, hegemonia, práticas discursivas entre outros.
Palavras-chave: Análise do Discurso, Divulgação Científica, Revista Ciência Hoje


1. Introdução
A revista ciência hoje é um dos trabalhos do Instituto Ciência Hoje que visa promover a alfabetização científica da população além de ser escrita por pesquisadores e ser uma revista associada à Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência. A introdução à ciência é de fundamental importância para o desenvolvimento pessoal e social pois diferentes formas de raciocínio e visões de mundo competem entre si e são bastante difundidas.
Nesse artigo será realizada uma análise do discurso da divulgação científica na Revista Ciência Hoje. Para isso serão usado editoriais de 8 números da revista. A divulgação científica apresenta a ciência e seus conteúdos ao público possuindo uma função educativa que visa aproximar as pessoas da ciência.
Busca-se analisar a configuração do discurso de divulgação científica e seus efeitos sociais ao passar uma imagem de ciência ao público leigo. Nesse sentido coloca-se o problema de qual imagem da ciência a configuração do discurso na Revista Ciência Hoje transmite e como esse discurso contribui para formar discursos predominantes sobre a ciência no Brasil.


2. Análise Crítica do Discurso


Para Foucault (1969) apud Maingueneau (1998): discurso é: “um conjunto de enunciados que dependem da mesma formação discursiva".
Silva (2009) caracteriza a ideologia “como uma instância que tem uma existência material e se articula com o domínio da economia. Esclarecendo essa articulação, os autores argumentam que a ideologia é uma das condições não-econômicas de reprodução das relações de produção existentes”.
Conforme Silva (2009) “as formações ideológicas caracterizam-se por serem elementos capazes de intervir como uma força em confronto com outras na conjuntura ideológica de uma determinada formação social”.
Segundo Silva (2009) as formações ideológicas (FIs) são compostas pelas formações discursivas (FDs). Para Pêcheux (1975) apud Silva (2009): formações discursivas são: “aquilo que, numa formação ideológica dada, [...] determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, [1975] 1995).
Segundo Resende e Ramalho (2006), a representação do discurso é um processo ideológico. As diferentes vozes representadas em discurso direto ou indireto estão relacionadas a questões de poder no uso da linguagem que implicam consequências de valorização e depreciação do que foi dito e daqueles que representam um discurso.
Conforme Resende e Ramalho (2006), “a maneiras particulares de representação de aspectos do mundo podem ser especificadas por meio dos traços linguísticos, que podem ser vistos como “realizando” um discurso”. O traço mais evidente na configuração do texto é o vocabulário usado para representar o mundo de maneira particular.
De acordo com Resende e Ramalho (2006) a luta pela hegemonia se dá por meio da fixação/estabilização e a subversão/desestabilização de construções das identidades discursivas. A hegemonia possui sempre uma estabilização relativa e portanto essa instabilidade permite focos de disputa entre discursos.
Resende e Ramalho (2004) caracterizam as práticas discursivas como “os processos de produção, distribuição e consumo do texto, que são processos sociais relacionados a ambientes econômicos, políticos e institucionais particulares”.
Para Chouliaraki E Fairclough (1999) apud Resende e Ramalho (2004) práticas são, então, “maneiras habituais, em tempos e espaços particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos – materiais ou simbólicos – para agirem juntas no mundo” (, p. 21).
De acordo com Eagleton (1997) apud Resende e Ramalho (2004) a hegemonia de um grupo social se forma ao “se estabelecer liderança moral, política e intelectual na vida social, por meio da difusão de uma visão de mundo particular pelo tecido da sociedade como um todo, igualando, assim, o próprio interesse de um grupo em aliança com o da sociedade em geral”.


3. Conjuntura do Problema


Para Chouliaraki e Fairclough (1999) apud Resende e Ramalho (2004) conjunturas são “conjuntos relativamente estáveis de pessoas, materiais, tecnologias e práticas – em seu aspecto de permanência relativa – em torno de projetos sociais específicos”; estruturas são “condições históricas da vida social que podem ser modificadas, mas lentamente”.
As sociedades se veem permeadas por diversos tipos de discursos que influenciam as práticas sociais. Nessa conjuntura sócio-histórica é que se insere a divulgação científica que visa a ampliação da influencia da ciência nas práticas sociais. O conhecimento científico é requisito fundamental para o desenvolvimento e progresso das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, há disputas entre visões de mundo científicas e visões de mundo não-científicas inclusive o senso comum.
A partir disso, a divulgação científica como projeto social da comunidade científica transmite ideias de ciência e efeitos sociais que necessitam ser muito bem calculados em sua formação. Por isso, é necessário problematizar de que maneira a divulgação científica está se constituindo enquanto discurso para que esses efeitos sejam o mais benéfico e efetivos possível.
O conhecimento científico é parte fundamental da construção de nosso mundo contemporâneo e se insere em diversas dimensões da vida social como a política, econômica, social, midiática, educacional, biológica, a saúde, etc. Nesse sentido, o projeto de alfabetização científica da revista Ciência Hoje visa promover o progresso nas diferentes áreas da sociedade brasileira por meio da difusão da visão de mundo científica.


4. O discurso de divulgação científica na Revista Ciência Hoje


Na carta ao leitor da Revista Ciência Hoje de título “Marco na Divulgação” alguns aspectos da configuração textual indicam o projeto de divulgação científica da revista. A partir desse projeto expresso nesse editorial busca-se analisar a imagem de ciência que a revista transmite. Nota-se que a alfabetização científica visada pelo Instituto Ciência Hoje visa segundo o texto: estimular o senso crítico, promover a cidadania e o debate político, a educação e aproximar e democratizar a ciência tornando o conhecimento científico domínio público.
A partir disso, busca-se analisar de que forma a revista Ciência Hoje realiza esse projeto de divulgação científica e quais os discursos que estão implícitos na constituição da revista por meio da escolha de termos linguísticos, tratamento dos temas, etc.
Nesse mesmo editorial o uso das expressões “linguagem hermética” e “rigor” indicam a intenção de iniciação científica ao estilo de raciocínio metódico da ciência. Essa apresentação da ciência ao público leigo ao promover a difusão da visão de mundo científica busca articular a hegemonia da Ciência frente a outras visões de mundo não-científicas.
A expressão “informação de qualidade” indica o tratamento da ciência na revista enquanto informação. O uso dessa expressão linguística aliada ao uso anterior do termo “senso crítico” mostra de que forma a revista busca promover a alfabetização científica. Enquanto a informação é adquirida enquanto dado pronto e acabado a promoção de reflexão por parte do público leigo se daria por meio do conhecimento. Aliando-se a isso a expressão “linguagem hermética” que a revista busca transformar em linguagem clara e acessível mostra como a ciência é apresentada enquanto algo fechado aos peritos. Tomando-se essas configurações textuais em conjunto nota-se que a alfabetização científica é feita por meio da apresentação da argumentação rigorosa do autor dos artigos e pesquisador com isso apresentando o estilo de pensamento científico para o público sem com isso promover a reflexão sobre outras dimensões desse conhecimento em suas implicações. Isto é, o próprio conhecimento técnico é apresentado mas sem criar as condições de debate sociopolítico para o leitor. Nesse sentido, apenas o ponto de partida para discussões posteriores sobre os temas é apresentado na revista e por isso os objetivos de promoção da cidadania e debate político se dariam num engajamento posterior à sensibilização sobre os temas científicos.
No editorial “A escravidão Revisitada” o uso da expressão “descoberta acidental” indica que o tratamento dado à ciência inclusive quando trata de temas que dizem respeito principalmente às ciências humanas é aquela ciência que descobre o mundo existente dos fatos. A essa visão de ciência contrapõe-se a ciência hermenêutica em que o mundo é algo a ser construído pela linguagem. A palavra acidental reforça ainda mais o significado da palavra descoberta. Já o uso da expressão “técnicas modernas” indica como a ciência é apresentada privilegia a técnica no tratamento dos temas. Essa valorização da ciência enquanto técnica expressa a concepção de ciência hegemônica nas sociedades ocidentais.
No editorial “A gente do novo mundo” o tema da história da população nativa do Brasil e a formação do imaginário do Novo Mundo é apresentado de forma indireta. Esse tratamento de um tema das ciências humanas de forma indireta pode indicar uma hierarquização das ciências humanas em relação à concepção hegemônica de ciência enquanto técnica na revista Ciência Hoje.
No editorial “Uma guerra dura” que trata do temas das superbactérias a frase “a população tem que ser permanentemente informada” indica o discurso segundo o qual a ignorância é a causa dos problemas e a informação promovida pela ciência a solução para os problemas. Com isso, a visão de mundo segundo a qual é necessário que haja cultura científica, educação e alta cultura é difundida implicitamente por meio do texto. A esse discuso da ciência enquanto solução é possível contrapor a ciência e o conhecimento enquanto criação de prejuízos à medida em que o uso da ciência no mundo contemporâneo é pervasivo.


5. Conclusão


A revista Ciência Hoje privilegia e transmite a imagem de ciência hegemônica enquanto técnica em suas configurações textuais. Com isso, busca articular e manter hegemonia da ciência e mudança de práticas sociais que dizem respeito às dimensões social, político e econômica por meio da apresentação puramente técnica do conhecimento. A alfabetização científica visada promove o rigor da argumentação técnica da ciência com a intenção de conquistar cidadãos para a visão de mundo da ciência. O debate político e a cidadania são estimulados pela aproximação do público leigo à ciência sendo que as discussões políticas e sociais em si mesmas não são tratadas na revista. As ciências humanas parece ter um espaço menor na revista Ciência Hoje, o que seria um reflexo da hierarquização correspondente do status de cientificidade do conhecimento hermenêutico e construído.
Acredita-se que com esse estilo de divulgação científica que se limita ao conhecimento técnico, a revista Ciência Hoje furta-se ao debate que o conhecimento reflexivo das ciências humanas tornaria possível. A questão a ser levantada é: por que os deslocamentos e lutas políticas seriam excluídas da divulgação científica? Possivelmente porque apresentar a ciência enquanto dimensão política e social possa acarretar na confusão entre o conhecimento científico e outras áreas ou dimensões da vida em sociedade. Com isso, a ciência em si mesma não seria apresentada de forma pura mas em conexão com as configurações da sociedade. Como seria possível a modificação das estruturas e discursos sociais com seus deslocamentos e incômodos e a apresentação das implicações políticas da ciência numa revista de divulgação científica? Esse é um desafio que ainda necessita ser enfrentado na democratização do conhecimento reflexivo das Ciências Humanas para que a transformação social ocorra em escala significativa e as ciências humanas receba maior status frente à sociedade. A polêmica que a divulgação desses debates traria seria demasiado incômoda para certos setores sociais e nesse sentido essa omissão contribui para a reprodução social. Por isso, a transmissão de uma concepção de ciência hegemônica pela revista Ciência Hoje permite que a ciência seja aliada aos setores dominantes da sociedade sem maiores questionamentos.

Referências



LESSA, R.; IVANISSEVICH, A. Marco na divulgação [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.49, n.294, p. 1, jul, 2012.




MAINGUENEAU, Dominique. Discurso. In: ______. Termos-chave da Análise do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. p. 43-45.




Redação. Práticos mas perigosos [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.49, n.292, p. 1, maio, 2012.




Redação. Risco Latente [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.49, n.293, p. 3, jun, 2012.




Redação. Uma guerra dura [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.48, n.287, p. 1, nov, 2011.




Redação. A gente do novo mundo [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.48, n.286, p. 1, out, 2011.




Redação. A escravidão revisitada [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.49, n.291, p. 1, abr, 2012.




Redação. Reflexos da crise [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.49, n.289, p. 1, jan, 2012.




Redação. Ansiedade: mecanismo de defesa ou transtorno? [Editorial]. CIENCIA HOJE, v.48, n.285, p. 1, set, 2011.




RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane C. Vieira Sebba. Análise de discurso crítica, do modelo tridimensional à articulação entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 5, n.1, p. 185-207, jul./dez. 2004.


______; ______. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.




SILVA, Renata. Linguagem e ideologia: embates teóricos. Linguagem em (Dis)curso, v. 9, n. 1, p. 157-180, jan./abr. 2009.


Anexos


Carta ao leitor


MARCO NA DIVULGAÇÃO


Há 30 anos surgia no mercado editorial brasileiro uma revista ímpar, que tinha como missão principal encurtar a distância que separava a comunidade científica da sociedade. O desafio parecia, a princípio, insuperável: para falar à população sobre ciência seria necessário substituir a linguagem hermética dos artigos científicos por textos de maior simplicidade e clareza, bem ilustrados e de fácil compreensão. Tudo isso sem perder o rigor e buscando dar visibilidade às pesquisas desenvolvidas no país. A esse desafio somava-se o fato de não existir no Brasil tradição na arte de divulgar ciência.
A Ciência Hoje foi lançada em Campinas, durante a 34ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e seu objetivo estava expresso no primeiro editorial: estabelecer um canal de comunicação entre os pesquisadores científicos e o grande público; e promover o debate político em torno de questões como cidadania, educação e participação universitária, possibilitando, assim, a democratização da ciência.
Com excelente recepção, a revista, no decorrer dos anos, ampliou sua penetração, criando novas publicações, e se consolidou como importante órgão de divulgação científica.
Grande parte da comunidade científica aprendeu com Ciência Hoje a escrever para um leitor não especializado. Cerca de 4 mil cientistas de todo o Brasil, além de centenas de outros trabalhando no exterior ou mesmo estrangeiros, escreveram artigos para a revista ao longo destes 30 anos. Em torno de 2 mil pesquisadores foram consultados para avaliar os textos de seus pares. Mais de 100 jornalistas e estudantes de comunicação passaram pela nossa redação ou colaboraram com a revista.
Hoje, o compromisso de levar à sociedade as pesquisas científica e tecnológicas realizadas por brasileiros se mantém vivo. Renova-se também, a cada edição, a promessa de estimular o senso crítico e aproximar a universidade da população, permitindo que a comunidade científica transforme o saber que detém em domínio público. A socialização do conhecimento e a consolidação do compromisso de levar informação de qualidade à população fazem Ciência Hoje, em 30º aniversário, ser aplaudida como uma revista de sucesso.


Renato Lessa e Alicia Ivanissevich
Instituto Ciência Hoje



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