Divulgação
Científica nos editoriais
da
Superinteressante e Scientific American Brasil
Ana
Maria Cordenonssi, Franthiesco Ballerini, José Aparecido de Oliveira
Universidade Metodista de São Paulo
Resumo
Este
artigo é parte de uma pesquisa explicativa, com metodologia
comparativa entre textos da mídia segmentada, na perspectiva da
Análise do Discurso da linha francesa, para analisar o discurso
científico em editoriais de duas revistas especializadas de
divulgação científica – Scientific American Brasil e
Superinteressante. O recorte consiste das edições de janeiro,
fevereiro e março de 2006. Serão analisados os editoriais vistos
como gêneros jornalísticos de viés opinativo, a partir dos quais
pretende-se verificar o modus operandi da linguagem nestes discursos,
sobretudo os aspectos ideológicos e as escolhas lexicais na
formulação discursiva e a forma como tratam o conteúdo da revista.
Este estudo se ocupará também em avaliar, ainda que sucintamente, o
modo como as duas revistas dialogam com seu público e avaliar o
tratamento que ambas oferecem ao campo da divulgação científica.
Palavras-chave:
análise
do discurso; intencionalidade; subjetividade discursiva;
não-neutralidade; conhecimento científico;
1. Ciência – mistério que suscita interesse
Em
um mundo, onde a ciência e tecnologia passaram a fazer parte do
cotidiano das pessoas, a demanda por informações sobre Ciência e
Tecnologia (C&T) se traduz no anseio das pessoas em acompanhar os
progressos e os desafios da vida contemporânea: cercadas de objetos,
aparelhos e serviços de tecnologia, as pessoas tornaram-se
consumidoras não só de C&T, mas também de informações sobre
C&T. Portanto, compreender as novas tecnologias de informação é
fundamental para o jornalismo científico. “E se o jornalismo é ou
deve ser reflexo da vida de cada dia, e esta se baseia em boa parte
na ciência, parece claro conferir ao jornalismo científico um
futuro carregado de interesse”, conforme Hernando (1990, p.17). A
C&T está incorporada no cotidiano de tal forma que “a
tecnociência insinua-se até em nossas maneiras de pensar
(microcomputadores), de fazer amor (pílula anticoncepcional), de dar
a vida ou de ir para a morte (bio ou tanatos tecnologia)”, nas
palavras de Chrétien (1991, p. 17).
Esse
interesse pode evoluir para compreensão mais profunda dos processos
de produção de C&T e oferecer condições de envolver o cidadão
comum nas discussões, o que remete à necessidade do jornalista
científico dominar as questões políticas de C&T e que possam
afetar a vida do cidadão comum, os impactos na economia, no meio
ambiente, na qualidade de vida das pessoas e nos reais interesses
existentes. A cobertura jornalística da C&T “exige uma
mobilização permanente, (...) sob pena de nos vermos, jornalistas
científicos, de mãos atadas para enfrentar os desafios da nova
comunicação científica, que aproxima, de maneira vertiginosa, e
muitas vezes sutil, informação e marketing, ciência e mercado,
tecnologia e capital financeiro” (BUENO, web, 2001).
Contudo,
Bueno (1984, p.61) adverte que o jornalismo científico não tem
conseguido realizar sua função político-ideológica,
principalmente nos países função relaciona-se à
identificação do jornalista científico com a sociedade em que
vive: “O jornalista científico precisa escrever para seu povo,
para o seu país, e não para fomentar a ganância dos que investem
em C&T visando destruir os homens, os povos e a própria
natureza”. Espera-se do jornalista, responsabilidade de
apuração e informação, contato com fontes sólidas e compromisso
ético, da mesma forma que se espera compromisso público dos
pesquisadores e cientistas.
A
cada dia é mais clara a não-neutralidade da teoria e da ciência, o
que parece exigir dos cientistas tomada de posição ideológica e
compromisso político. Assim, em locais, onde o subdesenvolvimento
associado à dominação/dependência dificultam a transformação
dos sistemas atuais, a alternativa política da teoria e da ciência
deveria ser a de contribuir para a libertação social, econômica,
cultural, política e tecnológica da sociedade e dos setores mais
oprimidos e marginalizados (Bordenave, 1986, p. 110).
A
difícil tarefa de transmitir ciência ao público leigo é e tem
sido exercida não só por jornalistas, mas pelos próprios
cientistas, educadores, autores de ficção científica, etc., que
devem ter consciência do desafio de partilhar o conhecimento,
mediante recursos lingüísticos, retóricos e visuais, para alcançar
o grande público, (Epstein, 2001, p.253). A mediação entre
especialistas e não-especialistas feita com escolhas lexicais e
formações discursivas próprias (Fiorin, 2001, p.32), ganha
destaque quando é preciso levar o debate científico ao grande
público, pois nem só de declarações e feitos de cientistas se
alimenta o noticiário sobre C&T (Belda, 2003, p.21).
Este
artigo analisa os editoriais de duas revistas científicas, durante
três meses, para verificar como estes veículos se posicionam frente
às temáticas tratadas. Para tanto, foram escolhidas as revistas
Superinteressante e Scientific American Brasil, de janeiro, fevereiro
e março de metodologia adotada é a Análise do Discurso
de Linha Francesa da escola pós-estruturalista. O trabalho começa
pelo histórico das publicações e por algumas considerações sobre
o editorial. Logo após, está a análise dos editoriais em quatro
tópicos: a) o diálogo com o público-alvo, b) função referencial
X auto-elogios: a questão da credibilidade, c) operadores
argumentativos e linguagem informal: a construção do editorial e d)
a importância da Ciência nos editoriais das revistas.
2.
Breve histórico das publicações
A
revista Superinteressante surgiu em 1987, fruto de um acordo entre a
editora Abril e o escritório espanhol da empresa Gruner & Jhar,
responsável pelo projeto original da revista Muy Interessante,
lançada com sucesso na Alemanha, Espanha, França, México,
Colômbia, Venezuela, Equador e Argentina. O projeto preconizava uma
publicação sobre cultura geral e curiosidades, que abrangia
Ciências Físicas e Biológicas, Geografia, Sociologia, Psicologia,
Zoologia, Tecnologia, Astronomia, Artes e temais atuais (Carvalho,
1996a).
A
análise da Super feita por Dieguez (1996, p.29) mostra que a
proposta é “revelar a ciência onde há dúvida, mistério e
curiosidade, apresentando ao mesmo tempo a ciência como a aventura
do conhecimento”. O mesmo caráter é confirmado por Carvalho
(1996b), que destaca entre as características da Super o grande
número de matérias de origem internacional e o uso da infografia
(ilustrações para facilitar a compreensão e atrair a atenção do
leitor), conforme Carvalho (1996a, p.75-76) “pois os infográficos
de Superinteressante usam recursos de computação que possam
proporcionar uma aparência mais próxima do real. O visual arrojado
é mais um atrativo para conseguir capturar o leitor jovem buscado
pela revista”.
Voltada
para o público jovem, a publicidade da revista tenta se fixar em
produtos que atendam a faixa etária de seu público, com espaço
para produtos consumidos por estudantes universitários e colegiais.
Embora tenha como público-alvo os jovens, a Super responde pela
curiosidade dos pais que pagam a assinatura ou compram a revista nas
bancas. Segundo Chaparro (1993), a Super alcançou, em seis anos,
tiragem de 280 mil exemplares mensais, tornando-se o maior sucesso
editorial brasileiro das últimas décadas, o que comprova a
significativa demanda por informação científica com tratamento
jornalístico.
A
Scientific American Brasil é a versão brasileira da Scientific
American, publicada pela Duetto Editorial, desde de junho
de A revista original surgiu nos Estados Unidos na
esteira da revolução industrial. Era, no início, um jornal de
patentes e invenções para um público ávido e maravilhado pelo
desenvolvimento tecnológico. O primeiro número de Scientific
American ("The advocate of industry and enterprise, and journal
of mechanical and other improvements") circulou em 28 de agosto
de 1845, com a redação principal e sucursais em Boston e
na Filadélfia. Com edições semanais, estava nas ruas "todas
as quintas-feiras de manhã". Passados 161 anos, a revista
acumulou reputação e credibilidade e espalhou-se por diversos
países. A edição americana é referência mundial de divulgação
científica.
Segundo
o diretor geral da versão brasileira, Alfredo Nastari, em entrevista
ao Observatório da Imprensa, entre as 20 edições internacionais, a
edição brasileira ocupa o quarto lugar em difusão, somente atrás
dos EUA, Alemanha e Itália, e já se desdobrou em outros títulos
relacionados à divulgação científica: Edições Especiais
Temáticas, História da Ciência, Gênios da Ciência, Exploradores
do Futuro, Viver Mente & Cérebro, Memória da Psicanálise,
Memória da Pedagogia e DVD Hubble. Segundo Nastari, o leitor da
revista, nos 20 países onde circula, é principalmente o
profissional com formação universitária, na faixa dos 49
anos, com interesse em C&T. A revista busca mostrar como o
desenvolvimento científico gera novas tecnologias, bem como estas se
transformam em negócios.
3.
Editorial – Espaço de Contradições
Muito
se tem debatido sobre os supostos ideais de objetividade,
neutralidade e imparcialidade da imprensa, difundidos pelos manuais
de redação das empresas jornalísticas. Contudo, os próprios
manuais reconhecem a subjetividade do processo de produção da
notícia, presentes desde a pauta à escolha das palavras para a
construção do texto final. Nos produtos opinativos é perceptível
o viés editorial dos veículos, cujos editoriais assumem a condição
de formadores de opinião já na escolha dos fatos merecedores de
destaque, que legitimam sua linha editorial. Nesse sentido, a
linguagem exerce relevante papel na perspectiva de seus elementos
subjacentes.
As
publicações científicas são excelentes objetos de pesquisa nesse
campo, uma vez que a linguagem científica é considerada complexa
para a maioria dos leitores e é quando a manipulação ou a
distorção de informações ficam mais susceptíveis de ocorrência.
Por expressar a opinião do veículo de comunicação, o editorial
reflete a coexistência de diversas forças, tais como interesses
políticos e econômicos da empresa, ideologias e crenças de seu
conselho editorial e dos demais jornalistas. Marques de Melo (1994,
p.96) fundamenta este raciocínio: “O editorial afigura-se como um
espaço de contradições. Seu discurso constitui uma teia de
articulações políticas e por isso representa um exercício
permanente de equilíbrio semântico. Sua vocação é de apreender e
conciliar os diferentes interesses que perpassam sua operação
cotidiana”.
Os
editoriais se incluem na afirmação de que o processo de comunicação
envolve a compreensão do sentido interno, do subtexto e do motivo
por trás do texto. Segundo Luria (2001, p. 188), a profundidade da
“leitura” (ou a descoberta do seu significado interno) difere de
pessoa para pessoa. Esta relação entre comunicador e público é
imprescindível porque o editorial dialoga com o leitor, portanto,
não é uma recepção passiva. Pêcheux (1969) oferece uma boa
reflexão sobre esta relação ao tratar sobre qual a imagem o
jornalista faz de seu público e/ou que tipo de antecipação ele faz
sobre a imagem que o público faz do jornalista e de si mesmo. Sob
essa perspectiva é possível afirmar que a relação
jornalista/leitor pressupõe uma relação intersubjetiva e com a
própria linguagem, que permite refletir sobre o sujeito, linguagem e
história.
4.
Análise dos editoriais
Ao
analisar os editoriais das duas revistas, depara-se com alguns pontos
em comum e outros não, quanto ao discurso desse tipo de texto
jornalístico e que, apesar de seus públicos distintos, traduz a
opinião das revistas analisadas. Destacamos que uma das
peculiaridades encontradas é a diferenciação dos editoriais destas
revistas em relação aos editoriais de jornais. Segundo o Manual
Geral de Redação do jornal Folha de S. Paulo, “editorial é o
texto em que o jornal exprime de maneira formal suas opiniões. Nunca
é assinado.” (FOLHA de S. PAULO, 1987, p.152).
Essa
definição não encontra muita semelhança com a postura praticada
pela Scientific e pela Super, uma vez que as duas revistas optam por
textos assinados, cujo teor aponta mais para a remissão das matérias
e talvez comentários extemporâneos, como é o caso da segunda.
Nesse sentido, os editoriais das revistas citadas estão, de certa
forma, de acordo com Marques de Melo (1994, p.104), que afirma que as
revistas “recorrem às cartas dos editores, mais próximas daquilo
que poderíamos chamar de merchandising jornalístico do que de
expressões opinativas”
É
possível perceber a intencionalidade das duas revistas de divulgação
científica, embora façam uso de estratégias discursivas
diametralmente opostas, em função talvez do público a que se
dirijam, mas ambas apostam na manutenção da forma como são vistas
por seus consumidores. Enquanto a primeira traduz a ciência com um
apelo comercial, visual colorido, matérias curtas, estilo jovem de
redação, leitores jovens e sensacionalismo, a segunda opta pelo
reforço da tradicional oposição entre discurso especializado de
ciência, próprio de especialistas, e o senso comum do público
leigo.
Essa
intencionalidade, tanto para perpetuar mitos de autoridade como para
angariar consumidores, confirma a não-neutralidade da linguagem. O
uso da língua é, assim, a função em determinado contexto,
materialmente relacionado às intenções dos falantes, por isso, a
intencionalidade não existe como uma condição “psicológica
pura” para a existência do discurso (Chamarelli Filho, 2002).
A
seguir, a análise comparativa dos editoriais dos dois veículos
diante de subtópicos temáticos e a interpretação dos dados
levantados.
4.1
O diálogo com o público-alvo
Nos
editoriais, cuja produção pressupõe ponderações consensuais, é
possível perceber que o tom de autoridade discursiva estabelece uma
relação de cumplicidade com o leitor, o que é possível justificar
com Maingueneau (2000, p.98): “Com efeito, o texto escrito possui,
mesmo quando o denega, um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse
tom permite ao leitor construir uma representação do corpo do
enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo)”.
Na
análise dos editoriais da Super e Scientific nota-se que o primeiro
veículo apresenta constante diálogo com seu público-leitor,
enquanto a Scientific prefere certo distanciamento e utiliza outros
meios para dialogar com o leitor como, por exemplo, as funções
referenciais, como se verá mais adiante. O editorial da Super de
janeiro de 2006 começa assim: “Esta carta aqui veio do passado.
Estou escrevendo em 2005 e você, leitor do futuro, está lendo em ,
cuja figura imagética coloca o leitor num plano mais avançado em
termos temporais do que o próprio autor. Esta intencionalidade já é
visível no próprio título “Está bom 2006?”.
O
recurso de ficção literária leva o leitor a se colocar como
participante da produção editorial, o que confirma a proposição
de Koch (1995, p.12) de que na lingüística do discurso “o que se
visa, então é descrever e explicar a (inter)ação humana por meio
da linguagem, a capacidade que tem o ser humano de interagir
socialmente por meio da língua, das mais diversas formas e com os
mais diversos propósitos e resultados.” Maingueneau (1996, p.116)
vai além ao explicar que o processo requer o entendimento
de “que o intercâmbio verbal como qualquer atividade social,
repousa num ‘contrato’ tácito (que varia evidentemente de acordo
com os gêneros de discurso)”.
A
estratégia de diálogo prossegue no mês de fevereiro, com o
editorial que começa assim: “Quando o sol nasceu dia 13 de
janeiro, alguns leitores da SUPER ainda não tinham ido dormir”. A
revista utiliza, outra vez, um recurso estilístico próprio da
literatura e o título do editorial “Vai dormir, leitor!” é um
diálogo que flerta com o leitor, ora chamando sua atenção por meio
da narrativa, ora levando-o a um procedimento de digressão, com
vistas a enfatizar a edição anterior da revista e não a atual. O
texto também já revela o público-alvo da revista, composto
eminentemente por jovens. Neste sentido, é bastante plausível a
afirmação de Belda (2003) e Zamboni (2001), em que há, por parte
da mídia, uma apropriação social do discurso científico na medida
em que o reformula segundo lógicas midiáticas em um discurso
próprio.
O
diálogo irreverente e informal continua, até com o uso do português
coloquial “deixe eu”, afastando-se da norma culta da língua. O
reforço à edição anterior marca a intencionalidade do redator,
com tom de mistério no texto para despertar a curiosidade do leitor.
Tais estratégias confirmam a não-neutralidade da linguagem,
conforme Eni Orlandi (1983, p.107), para quem “o modo de
funcionamento da linguagem não é integralmente lingüístico, uma
vez que dele fazem parte as condições de produção que representam
o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso”.
A
subjetividade discursiva no editorial da Super reafirma a
não-neutralidade da linguagem, evidenciada pelo emprego de
pensamentos estereotipados, o que encontra respaldo em Barthes (1984,
p. 34), quando diz que “o uso da linguagem e seus códigos não são
práticas neutras. Se as palavras são sempre uma operação do
pensamento, os signos
e as palavras podem transmitir ideologias, pré-conceitos e
pensamentos estereotipados.”
O
editorial mantém o clima narrativo de mistério e alterna tensões e
revelações na construção da interatividade com o leitor – este
só teria conhecimento da ilustração da matéria se estivesse
disposto a um jogo de gato e rato, cuja recompensa incluiria brindes
designados de superprêmios. Estratégia de marketing ou apelo
comercial, a experiência aguça o interesse do leitor pelas edições
anteriores e o leva a interagir com a revista. A recorrência às
edições anteriores, bem como às estruturas narrativas próprias de
literaturas policiais, apontam para o caráter dialógico do discurso
(Bakhtin, 1997).
A
intenção de envolver o leitor da Super por meio do discurso,
segundo o qual a equipe de produção da revista é citada com
freqüência, ocupa o espaço que deveria trazer a opinião do
veículo. Entretanto, os editoriais da Scientific traduzem no texto
subjacente o viés editorial da revista, como por exemplo, a crítica
implícita aos entraves que os princípios morais podem significar
para o avanço do conhecimento científico.
Em
fevereiro, a Scientific utiliza o tom de autoridade e aproxima o
público-alvo não pelo diálogo explícito, mas através da
credibilidade das informações colhidas: “Duas matérias da
presente edição trazem comprovações científicas sobre hipóteses
das quais se suspeita – ao menos em termos populares – há algum
tempo”. Mais sisudo e próximo dos discursos de divulgação
científica, o texto traz referências das principais chamadas de
capa. A expressão “comprovações científicas” reforça a idéia
de Coracini (1991, p.45), de que ocorre na ciência uma dominação
“com relação ao grande público, que se atemoriza diante da
terminologia incompreensível e da sabedoria mítica, provocando uma
reação de inferioridade e admiração”. Esta dominação também
pode ser vista na expressão “ao menos em termos populares”,
destacada por travessões, em que o poder da ciência é o de
comprovar ou não as suspeitas presentes no senso comum.
4.2.
Função referencial versus auto-elogios: a questão da credibilidade
As
duas revistas usam estratégias bem diferentes para conferir
credibilidade ao conteúdo interno. Enquanto a Scientific adota a
função referencial nos editoriais, a Super prefere ganhar
credibilidade ao falar do trabalho da equipe e do sucesso da revista,
do esforço árduo de se produzir o conteúdo. Enquanto a ciência,
que confere credibilidade à Scientific no primeiro plano do
discurso, é usada apenas como instrumento secundário no editorial
da Super, ou seja, primeiro vem o trabalho árduo da equipe, e depois
os dados científicos importantes coletados: “Enfim, estamos
acabando o ano com a certeza de que o sangue, o suor e as lágrimas
de 2005 não foram em vão”.
Um
fragmento da Super, de janeiro de 2006, explicita bem esta
estratégia: “Primeiro a revista está vendendo pacas.” A
intenção é levar ao leitor a idéia de sucesso editorial associado
às vendas, com as edições esgotadas como elementos de persuasão:
“Maçonaria foi a 4a edição
mais vendida dos nossos 18 anos de história.”. Aí aparece o
orgulho pelo trabalho realizado, bem como a intenção de destacar
que a revista tem 18 anos de existência. O uso do pronome possessivo
“nossos” tem conotação de engajamento dos profissionais e traz
implícita uma competição subjacente a cada edição: qual venderá
mais? A intenção de se promover aparece na Super em “recebemos os
resultados de uma pesquisa muito séria que a Editora Abril faz todo
ano...” o editorial valoriza a pesquisa ao utilizar a palavra
“séria” e já prepara o leitor para reconhecer como legítimo o
resultado favorável à publicação e o argumento é o resultado.
Já
a Scientific prefere fazer uso de dados referenciais para ganhar
credibilidade junto ao público. O editorial de janeiro de 2006
começa informando o clima de turbulência na área científica ao se
referir ao mês de dezembro como o “atípico”, o que prenuncia
alguma alteração no rumo das ciências: “Passadas as glórias e
as celebrações do laureado Prêmio Nobel, e antes que começasse o
recesso de fim de ano, os meios de comunicação começaram a
noticiar não-avanços ou conquistas na área científica, mas
acusações e suspeitas”. O texto traz implícita a informação de
que houve uma ruptura do avanço científico e estabelece como marco
temporal o período entre a entrega do Prêmio Nobel e antes do
recesso de fim de ano.
Essa
influência do contexto no discurso foi tratada por Koch (1995, p.
14) ao citar a teoria da enunciação, na qual o postulado básico é
de que “não basta o lingüista preocupado com questões de
sentido, descrever os enunciados efetivamente produzidos pelos
falantes de uma língua: é preciso levar em conta, simultaneamente,
a enunciação”, isto porque as condições de produção (tempo,
lugar, papéis de interlocutores, imagens recíprocas, relações
sociais) constituem o enunciado.
O
discurso prossegue em tom explicativo sobre o fato gerador dessa
polêmica e, como se não bastasse a situação delicada do
pesquisador, a revista, aparentemente de forma objetiva, reforça que
ambas as práticas das quais ele é acusado são antiéticas, com a
idéia subjacente de que a revista condena a atitude. Ao utilizar
recurso temporal gradativo “pouco depois”, leva o leitor a
pressupor mais escândalos desse cientista: “Pouco depois, a troca
de acusações agravou-se, todo o trabalho de Hwang foi posto à
prova frente às informações de que forjara os dados relativos à
sua pesquisa.”
4.3.
Operadores Argumentativos e Linguagem Informal: a construção do
editorial
A
comparação dos editoriais da Super e da Scientific pode ser feita
também por meio do uso da linguagem. Aqui notam-se diferenças bem
grandes entre os dois veículos. De um lado, a Super constrói seus
editoriais o tempo todo com base em uma linguagem informal,
utilizando jargões, clichês e gírias para apresentar o tom da
revista. Do outro lado, a Scientific produz seus editoriais por meio
do uso constante de operadores argumentativos que dão um tom
informacional e sério ao texto.
Já
na Super, a elaboração do editorial se dá de forma bem diferente,
como o de março: “As Tretas do Versi”, que deixa claro qual é o
público alvo, ao optar por uma linguagem informal, cheia de gírias,
para consumidores da ciência juvenil. Dedica-se a apresentar um novo
jornalista, Alexandre Versignassi. Em vez de mostrar os trabalhos do
profissional, a revista puxa o leitor pelas “tretas”, confusões
que o rapaz teve em uma determinada viagem à Argentina e durante uma
gravação no Programa do Jô.
O
discurso é todo permeado por jargões populares que aproximam o
leitor, como “até o Jô ele tretou”, “azar do gordo”,
“maluco” e “grande abraço”. “Quem o conhece sabe que o
sujeito é boa-praça, divertido, inteligente. O Jô nem conheceu
esse lado – implicou com o Versi e não o deixou falar. Azar do
Gordo.” Dessa forma, o editorial se sustenta nesses estereótipos
de linguagem para que haja uma tentativa de aproximação com o
público-alvo da revista. Do conteúdo da mesma edição, cita apenas
a seção superrespostas e a matéria do astronauta Marcos Pontes.
Mas aqui elas são citadas somente porque foram editadas ou
produzidas pelo integrante da equipe.
Já
a Scientific utiliza operadores argumentativos para deixar
transparecer sua opinião, com argumentos em tom de autoridade sobre
o assunto, como as acusações e suspeitas sobre o trabalho do
ganhador do Prêmio Nobel, em que a construção demonstra aparente
indiferença quanto a quem vier a finalizar os estudos. Ao utilizar o
operador argumentativo “no entanto”, a revista explicita que
apesar das acusações, não pode haver mais entraves na evolução
da pesquisa com células-tronco.
Outro
fragmento com o operador argumentativo está no editorial da
Scientific de fevereiro: “por enquanto, os testes só foram feitos
em algumas espécies de mamíferos, principalmente ratos, mas os
cientistas apostam na probabilidade de os efeitos do estrógeno...”.
Mesmo se afastando da responsabilidade pelas descobertas científicas,
ao enfatizar que os cientistas possuem apenas “probabilidades”
para fundamentar suas hipóteses, o tom de autoridade permanece. Este
recurso opõe argumentos enunciados de perspectivas diferentes, que
orientam, portanto, para conclusões contrárias.
A
mesma estratégia está em: “O alcance das transformações
maternais ainda não está estabelecido, mas hoje se sabe que, com a
experiência de ser mãe...” Os operadores argumentativos são
ferramentas para contrapor as limitações da pesquisa científica e
conduzem a conclusões desejadas São marcas de valor argumentativo e
persuasivo, capazes de reforçar a autoridade e manter o fosso entre
o discurso científico e o domínio do senso comum, reservado ao
leitor comum. Conforme Gnerre (1998, p. 23), tais práticas “excluem
da comunicação as pessoas da comunidade lingüística externa ao
grupo que usa a linguagem especial, e, por outro lado, têm a função
de reafirmar a identidade dos integrantes do grupo reduzido que tem
acesso à linguagem especial”.
O
editorial da Scientific também pode ser analisado sob a ótica das
idéias de Marcuschi (1998), para quem o texto é relatado com
opiniões e a forma de detectar tais opiniões é por meio dos verbos
introdutores de opinião. O uso de construções adverbiais na
Scientific exime o editorialista de opinar, mas deixa a opinião da
própria revista nas palavras de quem as emite, devolvendo a
responsabilidade do dito ao próprio autor da opinião, como no
trecho: “Para pesquisadores que lidam com lógica avançada, porém,
a abordagem conjutista apresenta desvantagens, como a proliferação
de conceitos supérfluos que correm o risco de ser guilhotinados pela
navalha de ocam, princípio segundo o qual a resposta mais enxuta
para um problema em geral é a mais correta.”
Outro
ponto é que, nesta análise, também é possível identificar os
dois tipos de enunciação definidos por Koch: o discurso e a
história. Na Super, percebe-se o enunciado sob a forma de discurso,
no qual o indivíduo (editor) se "apropria" da língua,
instaurando-se como "eu" e, instaurando o outro como "tu",
caracterizando coordenadas espaço-temporais. Já na Scientific, há
o enunciado histórico, sem a presença do eu, relatando eventos
passados (mesmo que num passado muito recente, como no mês passado),
sem o envolvimento do locutor, "como se os fatos se narrassem a
si mesmos".
Apesar
das diferenças editoriais, em ambas as revistas a subjetividade
discursiva nos editoriais é evidente e também reafirma a
não-neutralidade da linguagem, evidenciada pelo emprego de
pensamentos estereotipados. A intencionalidade é também corroborada
pela noção das escolhas lexicais dos enunciados estudados. Embora
tratem da divulgação científica, as duas revistas possuem estilos
lingüísticos diferentes – uma opta pela norma culta da língua,
enquanto que a outra não economiza em chavões, frases feitas,
gírias e até desvios para expressões coloquiais. Tais escolhas,
conforme assevera Possenti (1988, p.188), não são desvios da norma
padrão da língua, mas estilos cujas escolhas lexicais ou sintáticas
são de cada locutor em sua enunciação, deixando a marca da
subjetividade no discurso para “realizar o objetivo que têm em
mente”.
4.4.
A importância da Ciência nos editoriais das revistas
As
duas revistas têm, em comum, o fato de serem divulgadoras da ciência
para os respectivos públicos-alvo, mas a importância da ciência
não se faz presente da mesma maneira nos editoriais de cada uma
delas. A Super praticamente não faz menção à importância do
estudo científico nos editoriais analisados, apenas se limita a
reforçar o fato de que os dados científicos foram muito bem
trabalhados pela equipe, conforme explicado no item 4.2. e no trecho
a seguir: “Enfim, estamos acabando o ano com a certeza de que
o sangue, o suor e as lágrimas de 2005 não foram em vão”.
Já
a Scientific reforça o tempo todo a importância da ciência, dos
estudos e dos avanços científicos, como no editorial sobre o
potencial de cura das células-tronco e faz uma crítica velada aos
debates já divulgados quanto às questões éticas: “Ao redor do
mundo cientistas debruçam-se sobre suas bancadas de trabalho à
procura de informações sobre essas células e seu suposto potencial
de cura”. O tom de lamento do texto mostra a valorização da
ciência ao afirmar que o caso não pode ser pretexto para
interrompê-la por quem vê a pesquisa do ponto de vista moral. Esse
encadeamento de idéias comprova a proposição de Luria (2001, p.
190), de que a enunciação não é mera justaposição de frases:
“se a comunicação fosse somente uma cadeia de frases isoladas e
se não existisse a ‘influência dos sentidos’ (o enriquecimento
do sentido da frase seguinte pelo sentido da anterior), a compreensão
de todo texto seria impossível”.
O
discurso defende a pesquisa, com ressalvas de respeito aos princípios
éticos já estabelecidos socialmente. “Seria um retrocesso de
conseqüências nefastas se o caso isolado de Hwang fosse levantado
como bandeira por aqueles que se colocam, moral e não
cientificamente, contra o avanço desses estudos”. A crítica aos
obstáculos morais nas pesquisas de células-tronco, sem que os
mesmos sejam explicitados, pressupõe que o leitor já os conheça e
estabelece uma relação de dominação, em que se pretende
convence-lo da importância do estudo. Segundo Coracini (1991, p.
45): “Na ciência essa dominação também ocorre, não com relação
ao interlocutor-especialista, mas com relação ao grande público
que se atemoriza diante da terminologia incompreensível e da
sabedoria mítica, provocando uma reação de inferioridade e
admiração”.
O
editorial de março da Scientific tenta convencer o leitor da
importância das matérias e das pesquisas científicas citadas, ao
contrário da Super, que não usa o editorial para falar do conteúdo
da revista. A ciência na Scientific é legitimada por argumentos dos
cientistas que se unem em um discurso pró-avanço das pesquisas e
mesmo quando há opiniões conflituosas sobre um tema, há consenso
sobre a importância de tal estudo. “Na pesquisa científica, não
há disputa de interesses. Portanto, os argumentos são sempre
explicitados com clareza e sujeitos a críticas (pretendendo ser para
o bem). Na ciência, a experiência exposta em discurso deve ser
testada, reavaliada, e até reformulada. Erros e falhas é que
impulsionam a ciência.” (CORACINI, 1991, p. 49).
5. Considerações finais
A
subjetividade, a não-neutralidade e a intencionalidade discursivas,
bem como a responsabilidade social do jornalista científico ao
divulgar C&T são princípios básicos para a compreensão mais
profunda do jornalismo científico, sobretudo quando o assunto é
polêmico e envolve o cidadão comum.
As
estratégias discursivas, como o diálogo com o público-alvo,
operadores argumentativos, linguagem informal, adoção de
referenciais científicos e auto-elogios, mais que elementos
constitutivos do estilo da linguagem persuasiva de cada revista,
dissimulam os reais interesses das publicações, entre eles a
credibilidade do veículo e a importância dada à Ciência.
Marcuschi (1998, p.112) respalda esse raciocínio: “As estratégias
jornalísticas para relatar opiniões não são uma mera questão de
estilo, pois as palavras são instrumentos de ação e não apenas de
comunicação. É muito difícil informar sem manipular, por melhores
que sejam as intenções. Saber o que alguém diz é penetrar em
profundidade naquilo que ele não disse.”.
O
editorial, por refletir a co-existência de diversas forças, tais
como interesses políticos e econômicos, ideologias e crenças, deve
ser entendido como um processo de comunicação que requer a
compreensão do sentido interno, do subtexto e do motivo por trás do
texto. E também, por carregar a opinião do veículo, deve ter como
prerrogativa estimular o espírito crítico do leitor. Contudo, tem
se revelado em instrumento para legitimar valores culturais de
determinadas visões de mundo. A revista Scientific utiliza como
argumentos fatos que possam reafirmar seu discurso pró-avanço da
ciência, enquanto a Super usa argumentos para persuadir o público
de que é um sucesso editorial incontestável. Não que a revista não
tenha méritos, mas os fatos contemplados nos editoriais buscam a
legitimação do próprio sucesso.
De
qualquer forma, a divulgação do conhecimento científico não pode
se restringir aos paradigmas ideológicos, seja da perspectiva
política, econômica ou religiosa, nem a um grupo de elite, nem
tampouco servir apenas aos interesses comerciais, mas deve ser
propagada de forma democrática. Defendemos que a socialização do
conhecimento científico, independente do público a que o veículo
se destina, deve ser feita com responsabilidade sem discursos
auto-elogiosos, mas que possa contribuir para a construção de uma
sociedade mais justa, na qual o direito à informação, científica
ou não, seja respeitado.
[1] Trabalho
apresentado no TLC Seminários de Temas Livres em Comunicação, da
Intercom e orientado pela Profa. Dra. Elizabeth Moraes
Gonçalves
[2] Ana
Maria Cordenonssi: doutoranda pela Universidade
Metodista de São Paulo, professora do Curso de Jornalismo da
Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) desde 1993 e mestre em
Educação pela Unimep, anamcor@terra.com.br
Franthiesco
Balerini- mestrando pela
Universidade Metodista de São Paulo. Jornalista, repórter de
cinema do Grupo Estado (Jornal da Tarde), franthiesco@yahoo.com.br
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