http://blog.sbnec.org.br/2013/08/voce-quer-mesmo-ser-cientista-uma-reflexao-sobre-a-pos-graduacao-e-profissionalizacao-da-ciencia/
“Você quer mesmo ser cientista?” Uma reflexão sobre a pós graduação e profissionalização da ciência
Por pbado | 11 de agosto de 2013
Nas últimas semanas, a proposta de regulamentação da profissão cientista1,2,3 assumiu
uma ampla dimensão. De acordo ou não com a proposta de
profissionalização, ela é uma realidade. Uma vez que essa questão não
foi ao menos discutida seriamente sob a perspectiva das transformações
no modo de produção científica, conceitos fundamentais estão sendo
completamente ignorados. Sentimos, portanto, que é importante expor
essas questões e colocá-las para reflexão e debate.
Grande parte dos pós-graduandos acredita
que a profissionalização é a solução para a melhoria de suas condições
de trabalho e é importante, portanto, ressaltar que essa proposta propõe
uma separação entre a ciência e pós-graduação. Ou seja, a
profissionalização do cientista é uma questão, enquanto a melhoria de
condições do pós-graduando é algo completamente diferente do que está
sendo discutido na proposta de profissionalização. É importante que isso
fique claro.
De acordo com a proposta de
profissionalização, cientistas profissionais serão trabalhadores em
ciência, com carteira assinada, enquanto os pós-graduandos serão aqueles
que realmente querem se dedicar à carreira científica e acadêmica, e
não somente trabalhar em ciência. Dessa forma, uma vez formados em
qualquer curso de graduação, os recém graduados poderão escolher entre:
(a) fazer uma pós-graduação stricto sensu ou (b) seguir a
carreira de cientista (trabalhador em ciência). Alguns afirmam que, com
essa separação, a pós-graduação ficará reservada para as pessoas que
realmente demonstrarem autonomia intelectual e capacidade de
eventualmente liderar um laboratório, enquanto quem não possui esses
atributos poderá se tornar cientista.
Naturalmente, com essas afirmações, surge a questão do que é ser cientista?
Essa é uma pergunta complexa, com
diversas respostas e que envolve diversos pontos de vista. Mas,
principalmente, essa pergunta possui diferentes significados em
diferentes momentos da ciência e, portanto, é importante contextualizar
esse processo historicamente.
A ciência pós-acadêmica
Durante os séculos XVI-XVIII, os
cientistas eram indivíduos com perguntas e financiamentos próprios que
dedicavam suas vidas em busca de respostas. Sabemos que essa não é a
realidade atual e que a ciência adquiriu um novo modo de produção.
Atualmente, ela é financiada em grande parte pelo governo, que por sua
vez é regido pelas grandes corporações. Quando o financiamento passa a
ser restrito por determinadas agências, até mesmo a ciência mais básica
não pode ser mais considerada isoladamente.
O físico e epistemólogo, John Ziman4
descreveu ainda na década de 90 o processo de transição no modo de
produção científica (transformação do modo I para modo II de produção de
conhecimento) e denominou essa transição de “ciência pós-acadêmica”5.
Uma vez que na ciência acadêmica assume-se que os cientistas são livres
para escolher suas próprias questões de investigação, com alguns
limites razoavelmente estipulados, na ciência pós-acadêmica, espera-se
que os cientistas trabalhem em problemas que eles não criaram
pessoalmente, dentro de um grupo de pesquisa voltado para uma
determinada investigação.
De maneira importante, ao se alterar o
modo de produção do conhecimento, o próprio conhecimento produzido é
alterado. Além disso, através da renúncia de valores ligados a uma
cultura acadêmica e à adoção de valores ligados a uma cultura
empresarial, o valor atribuído ao conhecimento também se altera.
Ainda que essas questões não sejam tão
evidentes para nós pós-graduandos, os argumentos para melhorias de
condições de pesquisa são legítimos e precisam ser atendidos.
Bastante preocupante, porém, é o fato
de, indignados com as condições de trabalho e estudo, nos agarrarmos à
primeira proposta de profissionalização, sem nem ao menos questionar a
existência de melhores caminhos. Afinal, o papel do cientista não é
questionar?
Alguns pontos importantes para a profissionalização do cientista
Antes de prosseguirmos com os argumentos
da profissionalização, vale ressaltar que a profissão pesquisador já
existe e você pode ser um pesquisador em diversas instituições de
pesquisa (ex. Fiocruz, IDOR, Einstein, UNESP, EMBRAPA, EMBRAER, etc).
Porém, essa posição não existe na maioria das Universidades, e os
pesquisadores/cientistas da Universidade são oficialmente professores
universitários concursados.
Mas, como ressaltamos inicialmente, por
mais controversa que a proposta seja, ela é uma realidade. E, como
realidade, diversos pontos importantes acerca dessa nova profissão
precisam ser levantados.
1. Direitos e deveres. Todos
falam muito dos direitos que os cientistas merecem, mas quais seriam
exatamente os seus deveres trabalhistas? Ao nosso ver, a utilização de
horas trabalhadas através de presença (bater ponto) não é apropriada,
uma vez que o trabalho científico envolve competências intelectuais que
não são restritas a períodos de horas trabalhadas formalmente.
2. Questão salarial. Enquanto
muitos acreditam que o salário irá melhorar com a profissionalização,
uma matemática básica permite um grande ceticismo em relação ao aumento
salarial. Com o desconto mensal de tributos na folha de pagamento de
aproximadamente 11% para contribuição previdenciária e 15% de imposto de
renda (valores divulgados para 20136) o cientista contratado
poderá receber um salário líquido não muito diferente do valor
estipulado para a bolsa de doutorado atualmente.
3. Quadro universitário de contratações.
Uma nova profissão foi criada! Agora, onde e como esses novos
cientistas irão se inserir? Uma vez que a Universidade não possui um
quadro de contratações (tudo ocorre somente através de concursos), essa
inserção na pesquisa dentro da Universidade provavelmente será realizada
via agências de fomento. Em umas das propostas, sugere-se que a verba
das agências de fomento passem a ser gerenciadas por fundações (muitas
delas já existentes inclusive). Pensamos que isso pode ampliar um passo
na burocracia universitária e tirar a autonomia do pesquisador em
gerenciar sua própria verba de pesquisa, como já acontece em algumas
universidades. Portanto, devemos encarar a questão de terceirização da
administração de recursos de pesquisa com cautela.
Mas afinal, se no final de toda a
legislação e burocracia, retornaremos às agências de fomento, por que
não criar um caminho diretamente por elas? É ingenuidade pensar que ao
encaminhar propostas de mudança de legislação o problema será resolvido
rapidamente. Existem projetos que tramitam há mais de 20 anos e até
agora não possuem sequer menção de ser votados (tomemos o exemplo do ato
médico, no qual primeiro texto foi encaminho em 2002 e só agora há
homologação da proposta).
Ainda, uma vez que a profissão cientista
seja criada, de forma adequada ou não, rápida ou demorada, a
pós-graduação continuará na mesma situação. E é por isso que os
pós-graduandos precisam buscar uma alternativa de melhorias, que não
possui relação alguma com a profissionalização discutida acima.
Por uma melhoria na pós-graduação
Entendemos que a estrutura da
pós-graduação no Brasil possui diversos problemas, porém, alguns de
solução mais simples, não necessitando de um projeto de lei. Por
exemplo, regimentos internos associados a contratos de bolsa
(especificando direitos e deveres mais detalhadamente) podem ser
negociados diretamente através das agências públicas de fomento (CAPES,
CNPq, FAPs). Reforçamos que a criação de uma proposta de lei é algo
muito demorado e pode inclusive comprometer uma tentativa de proposta
diretamente com essas entidades de fomento.
Descobrimos recentemente que um projeto
de lei regulamentando o salário e direitos dos pós-graduandos à classe
de pesquisadores-docentes7,8 foi enviada ao congresso em
2003. Essa proposta assume uma integração entre os pós-graduandos e os
pesquisadores-docentes, ao invés de propor uma separação entre eles,
como na proposta atual de profissionalização. Acreditamos que devemos
nos posicionar, juntamente com a classe dos docentes-pesquisadores, para
mudar a realidade de docência e pesquisa nas universidades.
Porém, muitos aspectos discutidos entre
os pós-graduandos como sendo necessidades urgentes são de fácil
resolução, bastando incluir um contrato de bolsa mais claro e
contemplando nossos direitos e deveres. A questão da carga horária, por
exemplo. Por mais que esteja escrito que é regime de dedicação exclusiva
(na academia, geralmente 40h), precisamos tornar essas horas
explícitas. O direito a férias, licença maternidade (ponto que
acreditamos que deve ser melhor discutido e pensado em relação a
estratégias mais humanistas), devem estar contemplados explicitamente no
contrato de bolsa seja ela federal (CNPq, CAPES) estadual (FAPs) ou
agências privadas de fomento.
Ainda, é importante não focarmos a
questão da ciência e da pós-graduação somente nas ciências
experimentais. As ciências humanas e artes possuem inúmeros programas de
pós-graduação de qualidade altíssima e possuem uma forma diferente de
tratar suas questões e de olhar para suas perguntas. E não são menos
ciência do que as ciências biológicas. Entretanto, é fato que em
diversos desses programas, não há trabalho de bancada e sim muita
leitura, disciplinas, cursos e pesquisas de campo, entre outros métodos
de pesquisa adequados à essa área do conhecimento humano. Como esses
estudantes seriam contemplados nessa proposta?
Acreditamos que a pós-graduação é um
momento de formação e, de fato, não deve ser encarado como um emprego,
pois não é. Portanto, a luta por melhorias em nossa formação são
pungentes e precisamos urgentemente fortalecer os programas de
pós-graduação no que se refere à qualidade dos mesmos.
Ressaltamos novamente que não há
necessidade de criação de projetos de lei para resolvermos muitos de
nossos problemas. Precisamos de algo muito mais urgente e de fácil
resolução, caso contrário ficaremos muito mais tempo na mesma situação.
Isso não é o que todos nós queremos.
Considerações finais sobre cientistas e ciência
Por fim, é um pouco desestimulante ver
tamanha mobilização dos pós-graduandos para as questões de
profissionalização, enquanto questões altamente relevantes para a
prática científica são pouco consideradas pelos mesmos. Por exemplo, a
qualidade da ciência tem sido sabidamente prejudicada com o viés de
publicação em massa, no qual somente resultados positivos e novos são
publicados, em detrimento de princípios básicos do método científico,
como reprodutibilidade e ética. Ainda que excelentes iniciativas estejam
em andamento (ex. reproducibility project9; pré-registro de estudos científicos10,11,12) e discussões a respeito de seleção estatística dos resultados tenham sido levantadas13 pouca atenção tem sido dada a essas questões no âmbito da pós-graduação.
Se o que buscamos é uma melhoria na
produção de ciência e não somente das nossas próprias condições de
trabalho, uma maior atenção deveria ser dada aos mecanismos vigentes de
produção científica, ao invés de priorizar uma grande luta para nos
adequarmos a eles. O novo modo de produção de ciência, no qual se
enquadra a discussão sobre a profissionalização do cientista, ao nosso
ver, não deve priorizar um trabalho intelectualmente estreito e
puramente técnico sob uma bandeira de uma grande revolução da carreira
científica.
Não sabemos qual será o resultado dessa
iniciativa, mas pensamos ser importante discutirmos coletivamente a fim
de melhorar a questão da pós-graduação, com maturidade, bom diálogo e
sem decisões precipitadas. Estamos vivendo um momento importantíssimo
para a ciência e precisamos nos unir para ampliar o debate acerca do
rumo que queremos para a ciência brasileira.
*Por Patricia Bado e Douglas Engelke
Patricia Bado
é mestranda em neurociência cognitiva no Programa de Ciências
Morfológicas (PCM) do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, em
colaboração com o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).
Douglas Engelke
é doutorando em neurociências no Programa de Pós-Graduação em
Neurologia/Neurociências da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
e é representante discente da Sociedade Brasileira de Neurociências e
Comportamento (SBNeC).
Esse texto é uma opinião pessoal dos autores, não representando opinião de nenhuma das instituições nas quais os autores estão vinculados.
Referências
- http://www.posgraduando.com/blog/a-pesquisa-cientifica-como-emprego-formal-durante-a-pos-graduacao
- http://www.youtube.com/watch?v=SzgxxLCRo-E
- http://blog.sbnec.org.br/2013/08/criacao-da-profissao-de-cientista-remedio-ou-veneno/
- http://www.phy.bris.ac.uk/people/berry_mv/the_papers/Berry394.pdf
- http://libweb.surrey.ac.uk/library/skills/Science%20and%20Society/SS_1_Reading2.pdf
- http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1219805-veja-quais-sao-os-descontos-feitos-no-salario-do-trabalhador.shtml
- http://www.camara.gov.br/sileg/integras/172921.pdf
- http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=14DB65213E1722E5F215C3E6810A6AC6.node2?idProposicao=138322&ord=1&tp=reduzida
- http://openscienceframework.org/project/EZcUj/wiki/home
- http://www.theguardian.com/science/blog/2013/jun/05/trust-in-science-study-pre-registration
- http://www.jclinepi.com/article/S0895-4356(13)00184-4/abstract
- http://neurochambers.blogspot.co.uk/2012/10/changing-culture-of-scientific.html
- http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/303/confiabilidade-em-crise