O sofisticado nepotismo das universidades brasileiras
Quando recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em 1997, o geógrafo Milton Santos[1] pronunciou um discurso intitulado O intelectual e a universidade estagnada.[2]
Nessa intervenção, indagando-se sobre as possibilidades de produção
adequada de conhecimento num mundo em constante mudança, questionou:
Como fazê-lo no Brasil, onde a vida
intelectual está organizada em torno de clubes, de clãs e do
enturmamento, sendo às vezes mais útil passar as noites em reuniões com
os colegas que mandam, do que queimar as pestanas, como antigamente se
dizia, em frente dos livros.
Santos aponta para um fenômeno bastante comum na paisagem universitária nacional, a saber: a endogamia.
Formam-se grupos de poder e de influência entre os membros da
comunidade acadêmica, os quais aparelham e capturam as instituições,
mandando, desmandando e ditando seus rumos e perpetuando-se nas posições
de chefia. Nesses casos, como disse o geógrafo, vale mais a pena
investir o tempo em cópulas sociais – quando não físicas – com colegas
influentes do que em estudos, pesquisas e publicações.
Outro aspecto dessa formação de panelinhas é a endogenia:
a produção das futuras gerações acadêmicas no interior da própria
universidade, sem muito espaço para influências externas. Isso está bem
documentado por uma pesquisa do departamento de ciência da computação da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre circulação de pesquisadores no Brasil[3].
Analisando cerca de seis mil pesquisadores brasileiros, o grupo
observou que apenas 20% (um quinto do total, portanto) constroem suas
carreiras profissionais a mais de quinhentos quilômetros (500km) de onde
fizeram sua formação universitária. A avassaladora maioria permanece
nos entornos de sua alma mater, o que facilita – geograficamente, inclusive – a perpetuação de esferas de influência.
O efeito mais pernicioso dessa estrutura de reprodução endogâmica e endogênica é o engessamento
e a falta de circulação – não só de pessoas, mas de ideias. Gerações
atuais costumam repetir ou, na melhor das hipóteses, reformular os
trabalhos realizados por seus orientadores e orientadoras e,
consequentemente, treinar gerações futuras para seguir na mesma toada: a
repetição da repetição, ad nauseam. Ora, a força das universidades e da vida acadêmica reside precisamente em sua capacidade de abertura
a novas ideias. Sem ela, é impossível à universidade realizar sua
tarefa mais vital, da qual sua sobrevivência depende estritamente, como
bem apontou Santos:
A universidade, aliás, é, talvez, a
única instituição que pode sobreviver apenas se aceitar críticas, de
dentro dela própria, de uma ou outra forma. Se a universidade pede aos
seus participantes que calem, ela está se condenando ao silêncio, isto
é, à morte, pois seu destino é falar. A fidelidade reclamada não pode
ser à universidade, e a ela não temos razão para ser fiéis. Nossa única
fidelidade é com a ideia de universidade. E é a partir da ideia sempre
renovada de universidade que julgamos as universidades concretas e
sugerimos mudanças.
Pois bem, embora não se configurem estritamente como casos de nepotismo
– o favorecimento de parentes na nomeação de cargos – porque não se
tratam de relações consanguíneas, há de se convir que a atuação de padrinhos e madrinhas acadêmicos
é decisiva na construção de carreiras na universidade. Além de impedir a
renovação científica, intelectual e crítica das instituições,
pressupostos de seu fortalecimento, essa prática – que não é
exclusivamente brasileira – provoca distorções quanto à primazia da
qualidade acadêmica ou promoção de certa meritocracia.
Para além de razões culturais,
antropológicas e sociológicas que invocam traços da formação brasileira
como compadrio e cordialidade, uma das causas desse fenômeno está na
própria estrutura de carreira das universidades
brasileiras, especialmente as públicas. Uma vez aprovado(a) no concurso,
o(a) docente adquire estabilidade no cargo após um período de
experiência de alguns anos – normalmente três. Assim, ele ou ela só
mudará de instituição para se transferir para outra de maior prestígio.
Nas melhores universidades do país, isso raramente acontece.
Como combater esse problema? Engana-se quem pensa que a solução esteja na extinção da estabilidade.
Países anglófonos, como Estados Unidos, Inglaterra e Austrália, por
exemplo, concedem estabilidade a uma parcela cada vez menor de docentes[4],
o que gera uma massa de profissionais com contratos temporários
instáveis e precários, sobrecarregados por obrigações e impossibilitados
de desenvolver pesquisas de médio-longo prazo – o que, irônica e
paradoxalmente, lhes qualificaria para postos permanentes. Países como
Alemanha, França e Itália têm soluções locais para promover algum grau
de circulação em seus sistemas universitários, mas essas costumam estar
intimamente ligadas à história e à constituição desses.
Não é necessário, entretanto, importar
soluções. Um caminho se encontra disponível no Brasil, nas carreiras
jurídicas, por exemplo. Carreiras federais são organizadas
nacionalmente, e os ingressantes distribuídos pelas diversas Unidades da
Federação de acordo com a demanda e disponibilidade de vagas de cada
uma delas (exemplo: Ministério Público Federal). Ao longo da carreira, a
cada x anos, o(a) profissional pode optar por se transferir
para outra localidade – novamente de acordo com a demanda e a
disponibilidade de vagas. O mesmo acontece em esfera estadual (exemplo:
magistratura estadual). Isso tudo sem prejuízo da estabilidade no cargo.
Por que não tentar algo semelhante na
carreira acadêmica? Docentes e pesquisadores poderiam prestar concursos
federais e estaduais, após cuja aprovação seriam alocados nas
instituições que carecessem de profissionais. Alguns anos depois,
poderiam solicitar transferência para outras, se for de seu interesse.
Naturalmente, não se trata de uma
solução perfeita. Ela não impede a captura de bancas de concursos por
grupos de influência e distorções sistêmicas. No entanto, já é mais do
que se tem feito hoje para combater esse grave problema: nada. Dado o que está em jogo, vale a aposta.
Rafael Barros de Oliveira - Colaborador do Terraço Econômico
[2] http://www.adusp.org.br/files/revistas/11/r11a03.pdf
[3] http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/01/12/circulacao-limitada/
[4] https://www.insidehighered.com/news/2009/05/12/workforce