Universidade
Federal de Santa Catarina
Centro
de Comunicação e Expressão
Departamento
de Língua e Literatura Vernáculas
Análise
do Discurso
Prof. Adair Bonini
Análise de discurso crítica da
divulgação científica na Revista Ciência Hoje
Eduardo Popinhak Franco
Resumo
Esse
trabalho visa analisar o discurso de divulgação científica
presente na revista Ciência Hoje. Para isso, serão analisados os
editoriais de 8 números da revista. A análise visa compreender a
imagem de ciência transmitida por essa revista e como essa
divulgação contribui para discursos predominantes sobre a ciência
no Brasil. A base teórica para o trabalho será a Análise Crítica
do Discurso de Fairclough e Chouliaraki utilizando os conceitos de
discurso, ideologia, hegemonia, práticas discursivas entre outros.
Palavras-chave: Análise
do Discurso, Divulgação Científica, Revista Ciência Hoje
1. Introdução
A
revista ciência hoje é um dos trabalhos do Instituto Ciência Hoje
que visa promover a alfabetização científica da população além
de ser escrita por pesquisadores e ser uma revista associada à
Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência. A introdução à
ciência é de fundamental importância para o desenvolvimento
pessoal e social pois diferentes formas de raciocínio e visões de
mundo competem entre si e são bastante difundidas.
Nesse
artigo será realizada uma análise do discurso da divulgação
científica na Revista Ciência Hoje. Para isso serão usado
editoriais de 8 números da revista. A divulgação científica
apresenta a ciência e seus conteúdos ao público possuindo uma
função educativa que visa aproximar as pessoas da ciência.
Busca-se
analisar a configuração do discurso de divulgação científica e
seus efeitos sociais ao passar uma imagem de ciência ao público
leigo. Nesse sentido coloca-se o problema de qual imagem da ciência
a configuração do discurso na Revista Ciência Hoje transmite e
como esse discurso contribui para formar discursos predominantes
sobre a ciência no Brasil.
2.
Análise Crítica do Discurso
Para
Foucault (1969) apud Maingueneau (1998): discurso é: “um conjunto
de enunciados que dependem da mesma formação discursiva".
Silva
(2009) caracteriza a ideologia “como uma instância que
tem uma existência material e se articula com o domínio
da economia. Esclarecendo essa articulação, os autores argumentam
que a ideologia é uma das condições não-econômicas de
reprodução das relações de produção existentes”.
Conforme
Silva (2009) “as formações ideológicas caracterizam-se por serem
elementos capazes de intervir como uma força em confronto com outras
na conjuntura ideológica de uma determinada formação social”.
Segundo
Silva (2009) as formações ideológicas (FIs) são compostas pelas
formações discursivas (FDs). Para Pêcheux (1975) apud Silva
(2009): formações discursivas são: “aquilo que, numa formação
ideológica dada, [...] determina o que pode e deve ser dito”
(PÊCHEUX, [1975] 1995).
Segundo
Resende e Ramalho (2006), a representação do discurso é um
processo ideológico. As diferentes vozes representadas em discurso
direto ou indireto estão relacionadas a questões de poder no uso da
linguagem que implicam consequências de valorização e depreciação
do que foi dito e daqueles que representam um discurso.
Conforme
Resende e Ramalho (2006), “a maneiras particulares de representação
de aspectos do mundo podem ser especificadas por meio dos traços
linguísticos, que podem ser vistos como “realizando” um
discurso”. O traço mais evidente na configuração do texto é o
vocabulário usado para representar o mundo de maneira particular.
De
acordo com Resende e Ramalho (2006) a luta pela hegemonia se dá por
meio da fixação/estabilização e a subversão/desestabilização
de construções das identidades discursivas. A hegemonia possui
sempre uma estabilização relativa e portanto essa instabilidade
permite focos de disputa entre discursos.
Resende
e Ramalho (2004) caracterizam as práticas discursivas como “os
processos de produção, distribuição e consumo do texto, que
são processos sociais relacionados a ambientes econômicos,
políticos e institucionais particulares”.
Para
Chouliaraki E Fairclough (1999) apud Resende e Ramalho (2004)
práticas são, então, “maneiras habituais, em tempos e espaços
particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos – materiais ou
simbólicos – para agirem juntas no mundo” (, p. 21).
De
acordo com Eagleton (1997) apud Resende e Ramalho (2004) a hegemonia
de um grupo social se forma ao “se estabelecer liderança moral,
política e intelectual na vida social, por meio da difusão de uma
visão de mundo particular pelo tecido da sociedade como um todo,
igualando, assim, o próprio interesse de um grupo em aliança com o
da sociedade em geral”.
3.
Conjuntura do Problema
Para
Chouliaraki e Fairclough (1999) apud Resende e Ramalho (2004)
conjunturas são “conjuntos relativamente estáveis de pessoas,
materiais, tecnologias e práticas – em seu aspecto de
permanência relativa – em torno de projetos sociais específicos”;
estruturas são “condições históricas da vida social que podem
ser modificadas, mas lentamente”.
As
sociedades se veem permeadas por diversos tipos de discursos que
influenciam as práticas sociais. Nessa conjuntura sócio-histórica
é que se insere a divulgação científica que visa a ampliação da
influencia da ciência nas práticas sociais. O conhecimento
científico é requisito fundamental para o desenvolvimento e
progresso das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, há disputas
entre visões de mundo científicas e visões de mundo
não-científicas inclusive o senso comum.
A
partir disso, a divulgação científica como projeto social da
comunidade científica transmite ideias de ciência e efeitos sociais
que necessitam ser muito bem calculados em sua formação. Por isso,
é necessário problematizar de que maneira a divulgação científica
está se constituindo enquanto discurso para que esses efeitos sejam
o mais benéfico e efetivos possível.
O
conhecimento científico é parte fundamental da construção de
nosso mundo contemporâneo e se insere em diversas dimensões da vida
social como a política, econômica, social, midiática, educacional,
biológica, a saúde, etc. Nesse sentido, o projeto de alfabetização
científica da revista Ciência Hoje visa promover o progresso nas
diferentes áreas da sociedade brasileira por meio da difusão da
visão de mundo científica.
4.
O discurso de divulgação científica na Revista Ciência Hoje
Na
carta ao leitor da Revista Ciência
Hoje
de título “Marco na Divulgação” alguns aspectos da
configuração textual indicam o projeto de divulgação científica
da revista. A partir desse projeto expresso nesse editorial busca-se
analisar a imagem de ciência que a revista transmite. Nota-se que a
alfabetização científica visada pelo Instituto Ciência Hoje visa
segundo o texto: estimular o senso crítico, promover a cidadania e o
debate político, a educação e aproximar e democratizar a ciência
tornando o conhecimento científico domínio público.
A
partir disso, busca-se analisar de que forma a revista Ciência
Hoje realiza
esse projeto de divulgação científica e quais os discursos que
estão implícitos na constituição da revista por meio da escolha
de termos linguísticos, tratamento dos temas, etc.
Nesse mesmo editorial o uso das
expressões “linguagem hermética” e “rigor” indicam a
intenção de iniciação científica ao estilo de raciocínio
metódico da ciência. Essa apresentação da ciência ao público
leigo ao promover a difusão da visão de mundo científica busca
articular a hegemonia da Ciência frente a outras visões de mundo
não-científicas.
A
expressão “informação de qualidade” indica o tratamento da
ciência na revista enquanto informação. O uso dessa expressão
linguística aliada ao uso anterior do termo “senso crítico”
mostra de que forma a revista busca promover a alfabetização
científica. Enquanto a informação é adquirida enquanto dado
pronto e acabado a promoção de reflexão por parte do público
leigo se daria por meio do conhecimento. Aliando-se a isso a
expressão “linguagem hermética” que a revista busca transformar
em linguagem clara e acessível mostra como a ciência é apresentada
enquanto algo fechado aos peritos. Tomando-se essas configurações
textuais em conjunto nota-se que a alfabetização científica é
feita por meio da apresentação da argumentação rigorosa do autor
dos artigos e pesquisador com isso apresentando o estilo de
pensamento científico para o público sem com isso promover a
reflexão sobre outras dimensões desse conhecimento em suas
implicações. Isto é, o próprio conhecimento técnico é
apresentado mas sem criar as condições de debate sociopolítico
para o leitor. Nesse sentido, apenas o ponto de partida para
discussões posteriores sobre os temas é apresentado na revista e
por isso os objetivos de promoção da cidadania e debate político
se dariam num engajamento posterior à sensibilização sobre os
temas científicos.
No editorial “A escravidão
Revisitada” o uso da expressão “descoberta acidental” indica
que o tratamento dado à ciência inclusive quando trata de temas que
dizem respeito principalmente às ciências humanas é aquela ciência
que descobre o mundo existente dos fatos. A essa visão de ciência
contrapõe-se a ciência hermenêutica em que o mundo é algo a ser
construído pela linguagem. A palavra acidental reforça ainda mais o
significado da palavra descoberta. Já o uso da expressão “técnicas
modernas” indica como a ciência é apresentada privilegia a
técnica no tratamento dos temas. Essa valorização da ciência
enquanto técnica expressa a concepção de ciência hegemônica nas
sociedades ocidentais.
No
editorial “A gente do novo mundo” o tema da história da
população nativa do Brasil e a formação do imaginário do Novo
Mundo é apresentado de forma indireta. Esse tratamento de um tema
das ciências humanas de forma indireta pode indicar uma
hierarquização das ciências humanas em relação à concepção
hegemônica de ciência enquanto técnica na revista Ciência
Hoje.
No editorial “Uma guerra dura”
que trata do temas das superbactérias a frase “a população tem
que ser permanentemente informada” indica o discurso segundo o qual
a ignorância é a causa dos problemas e a informação promovida
pela ciência a solução para os problemas. Com isso, a visão de
mundo segundo a qual é necessário que haja cultura científica,
educação e alta cultura é difundida implicitamente por meio do
texto. A esse discuso da ciência enquanto solução é possível
contrapor a ciência e o conhecimento enquanto criação de prejuízos
à medida em que o uso da ciência no mundo contemporâneo é
pervasivo.
5. Conclusão
A
revista Ciência Hoje privilegia e transmite a imagem de ciência
hegemônica enquanto técnica em suas configurações textuais. Com
isso, busca articular e manter hegemonia da ciência e mudança de
práticas sociais que dizem respeito às dimensões social, político
e econômica por meio da apresentação puramente técnica do
conhecimento. A alfabetização científica visada promove o rigor da
argumentação técnica da ciência com a intenção de conquistar
cidadãos para a visão de mundo da ciência. O debate político e a
cidadania são estimulados pela aproximação do público leigo à
ciência sendo que as discussões políticas e sociais em si mesmas
não são tratadas na revista. As ciências humanas parece ter um
espaço menor na revista Ciência Hoje, o que seria um reflexo da
hierarquização correspondente do status de cientificidade do
conhecimento hermenêutico e construído.
Acredita-se que com esse estilo de
divulgação científica que se limita ao conhecimento técnico, a
revista Ciência Hoje furta-se ao debate que o conhecimento reflexivo
das ciências humanas tornaria possível. A questão a ser levantada
é: por que os deslocamentos e lutas políticas seriam excluídas da
divulgação científica? Possivelmente porque apresentar a ciência
enquanto dimensão política e social possa acarretar na confusão
entre o conhecimento científico e outras áreas ou dimensões da
vida em sociedade. Com isso, a ciência em si mesma não seria
apresentada de forma pura mas em conexão com as configurações da
sociedade. Como seria possível a modificação das estruturas e
discursos sociais com seus deslocamentos e incômodos e a
apresentação das implicações políticas da ciência numa revista
de divulgação científica? Esse é um desafio que ainda necessita
ser enfrentado na democratização do conhecimento reflexivo das
Ciências Humanas para que a transformação social ocorra em escala
significativa e as ciências humanas receba maior status frente à
sociedade. A polêmica que a divulgação desses debates traria seria
demasiado incômoda para certos setores sociais e nesse sentido essa
omissão contribui para a reprodução social. Por isso, a
transmissão de uma concepção de ciência hegemônica pela revista
Ciência Hoje permite que a ciência seja aliada aos setores
dominantes da sociedade sem maiores questionamentos.
Referências
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(Dis)curso, v. 9, n. 1, p. 157-180, jan./abr. 2009.
Anexos
Carta
ao leitor
MARCO
NA DIVULGAÇÃO
Há
30 anos surgia no
mercado editorial brasileiro uma revista ímpar, que tinha como
missão principal encurtar a distância que separava a comunidade
científica da sociedade. O desafio parecia, a princípio,
insuperável: para falar à população sobre ciência seria
necessário substituir a linguagem hermética dos artigos científicos
por textos de maior simplicidade e clareza, bem ilustrados e de fácil
compreensão. Tudo isso sem perder o rigor e buscando dar
visibilidade às pesquisas desenvolvidas no país. A esse desafio
somava-se o fato de não existir no Brasil tradição na arte de
divulgar ciência.
A
Ciência
Hoje
foi lançada em Campinas, durante a 34ª reunião anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e seu objetivo estava
expresso no primeiro editorial: estabelecer um canal de comunicação
entre os pesquisadores científicos e o grande público; e promover o
debate político em torno de questões como cidadania, educação e
participação universitária, possibilitando, assim, a
democratização da ciência.
Com excelente recepção,
a revista, no decorrer dos anos, ampliou sua penetração, criando
novas publicações, e se consolidou como importante órgão de
divulgação científica.
Grande
parte da comunidade científica aprendeu com Ciência
Hoje
a escrever para um leitor não especializado. Cerca de 4 mil
cientistas de todo o Brasil, além de centenas de outros trabalhando
no exterior ou mesmo estrangeiros, escreveram artigos para a revista
ao longo destes 30 anos. Em torno de 2 mil pesquisadores foram
consultados para avaliar os textos de seus pares. Mais de 100
jornalistas e estudantes de comunicação passaram pela nossa redação
ou colaboraram com a revista.
Hoje,
o compromisso de levar à sociedade as pesquisas científica e
tecnológicas realizadas por brasileiros se mantém vivo. Renova-se
também, a cada edição, a promessa de estimular o senso crítico e
aproximar a universidade da população, permitindo que a comunidade
científica transforme o saber que detém em domínio público. A
socialização do conhecimento e a consolidação do compromisso de
levar informação de qualidade à população fazem Ciência
Hoje,
em 30º aniversário, ser aplaudida como uma revista de sucesso.
Renato
Lessa e
Alicia
Ivanissevich
Instituto
Ciência Hoje